Espiar o livro alheio é indiscreto, mas irresistível!
Diana L. Corso
No ônibus, tal era meu empenho em descobrir a identidade do livro que
uma moça estava lendo que pegou mal. Num solavanco, quase caí sobre ela.
Imagine a posição esdrúxula que a missão requeria. A pobre vítima da
ostensiva curiosidade fechou o livro, colocando a mão em cima da capa
(maldita!), e proferiu um ofendido “com licença!”. Percebera a
indiscrição, reagia como se estivesse lhe espiando o decote. Apesar da
natural resistência, o nome do livro acabou sendo descoberto: era
evangélico. Foi um banho de água fria. Senti como se tivesse sido
expulsa de uma comunhão imaginária, composta pelos que navegam no mesmo
universo de fantasias. As escritas religiosas não me tocam, a empatia
com aquela leitura era impossível. Uma tristeza, meus esforços haviam
sido inúteis.
Sou
capaz de ridículos estratagemas para descobrir qual é o livro que alguém
esteja lendo em um local público. A capa contém a chave desse mistério,
desvela a alma do leitor, é o acesso para um acervo potencialmente
partilhável. Quem lê um livro que conhecemos deixa de ser um
desconhecido. Porém, essa curiosidade abusada é uma imperdoável
profanação da intimidade. Eu devia, como psicanalista, suportar
estoicamente a introspecção do próximo. Só me revelariam seus
pensamentos quem quisesse.
A
leitura é uma intimidade portátil, podemos carregá-la na bolsa, no
bolso. É uma experiência onírica controlável, nesse sentido melhor do
que as fantasias rebeldes dos sonhos noturnos. Se empolgante, nos
possuirá, mas também podemos abandoná-lo para divagar, assim como
postergar o clímax. Não é por acaso que a leitura foi acusada de
substituta ou incentivadora do onanismo. Sim, trata-se de um prazer
solitário: o de embalar sonhos.
Um
livro pode livrar-nos do ambiente tenso de uma sala de espera, da
imobilidade angustiante da viagem ou do vazio de uma conexão. Na
cafeteria, ele mantém afastados os conversadores indesejáveis. Livro é o
antônimo de um cachorro, quem sai à rua com seu animal de estimação tem
papo garantido. Ao contrário, leitura é refúgio, defensora da solidão
aprazível. Por que, então, essa deselegante intromissão na leitura
alheia?
Meter-se no livro do outro é voyeurismo,
do tipo clássico. O mesmo que leva a criança a espiar seus pais, ou que
alimenta a pornografia. O prazer alheio observado ou imaginado, revela e
ensina, o voyeur
viaja na cena, imagina-se parte dela. De forma segura, já que o espião
se protege no anonimato. Olhando, aprendemos os caminhos que o desejo
almeja percorrer. Da mesma forma, descobrir a obra que alguém lê é
participar da sua cena imaginária, de suas fantasias, adivinhar seu
sonho acordado. Não passa de uma devassidão pueril, mas a moça tinha
razão de ficar furiosa: é uma desagradável invasão de privacidade.
Incontrolável, no meu caso.
(http://www.marioedianacorso.com/voyeur-de-leituras)